Ao fim da estrada, chega-se a uma freguesia onde no cimo da serra a água corre. Livre e espontânea, ela brota aqui e acolá, formando poços, lagos e córregos. Ao longo das gerações, o povo da freguesia domesticou-a, trazendo-a às casas e levando-a aos campos e estábulos. Homens, animais e plantações usufruíam sustentavelmente dessa riqueza de forma coletiva e comunitária, atentando-se aos ciclos da chuva e da secura para assegurar água contínua para todos.
O comunitarismo, contanto, já passou de moda e a Câmara decidiu que já era hora de pôr um basta. Onde já se viu ter água gratuita? Agora há de ter contadores! E assim foram, políticos, técnicos e GNR, num esforço conjunto de conquista, hegemonizar a recalcitrante freguesia. O povo levantou-se, elevou-se e a turma não teve outra saída: dar meia-volta com seus contadores debaixo do braço.
Passam anos como corre água, consume-se uma década e lá estavam eles de volta com operários e tratores para reocupar o espaço: abrem buraco, substituem canos instalados pela comunidade, reaproveitam os poços, jogam cloro na água. Pronto! Agora há de pagarem pela água. Não bastasse a surpresa, a fatura vitalícia vinha acompanhada de um sistema de saneamento com estação de tratamento que despeja direto no rio de águas cristalinas. Até o pobre rio tinha de pagar a conta.
O povo mais uma vez se levantou e argumentou. “Não pedimos água com cloro em nossas casas.” “Temos água limpa e pura que sempre dessedentou os nossos pais.” “E o rio, coitado, para quê despejar lá?” “Somos uma freguesia tão pequena, não há necessidade de sujar o rio, basta apenas melhorar nossas fossas.” Ninguém queria pagar para beber água com cloro e a desconfiança era grande com relação à honestidade da empresa de saneamento de sempre garantir o tratamento necessário para salvaguardar o rio.
O debate sobre a privatização da água e o tratamento das águas residuais ultrapassa as fronteiras dessa pequena freguesia. Parte do capital internacional descarta que o acesso à água seja um direito público, à imagem das declarações de um dirigente de uma grande empresa agroalimentar suíça em 2018. Em suas próprias palavras, pensar que todo ser humano deve ter acesso a água é uma forma de extremismo. As águas deveriam todas ser privatizadas. Água privada e rio poluído, seria esta a hegemonização proposta para essa freguesia do cimo da serra?
O povo continua firme em seu combate pela gestão comunitária de sua água e a proteção de seu rio. Os contadores ainda não foram instalados e a estação de tratamento segue em construção. Mas o povo sozinho, de sua pequena freguesia, está a perder a batalha. A voz miúda já não intimida e, do topo do Alvão, apela por apoio e atenção. Esta freguesia chama-se Alvadia, terra bravia de gente íntegra.
“Alvadia, Terra Fria,
Como tu não há igual.
Nasceste no cimo da serra
No distrito de Vila Real.”
(Um pastor poeta do Alvão)
Crônica publicada no jornal a Gazeta Rural nº371 (30/09/2020)
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